TJSC – Testamento Cerrado – Descumprimento do Encargo pelo Legatário – Reversão da Propriedade ao Monte-Mor.

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      Apelação Cível n. 0000561-58.2009.8.24.0036, de Jaraguá do Sul

      Relator: Desembargador Sebastião César Evangelista

      CIVIL. SUCESSÕES. TESTAMENTO CERRADO. DISPOSIÇÃO DE ÚLTIMA VONTADE VERSANDO SOBRE PATRIMÔNIO E COTAS DE SOCIEDADE EMPRESARIAL, INSTITUÍDO SOB O ENCARGO OU CONDIÇÃO DE PRESERVAR O NOME DO SEU FUNDADOR. ESPÉCIE DENOMINADA DE LEGADO MODAL OU SOB CONDIÇÃO. DESCUMPRIMENTO DO ENCARGO. AÇÃO DE REVOGAÇÃO DA LIBERALIDADE POR DESCUMPRIMENTO DE ENCARGO. PREJUDICIAL DE MÉRITO ALEGADA EM CONTRARRAZÕES. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. PRESCRIÇÃO. INAPLICABILIDADE DO PRAZO ÂNUO DE QUE TRATA O ART. 178, § 6º DO CC. PRELIMINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. MÉRITO. BUSCA DA REAL VONTADE DO TESTADOR. DESCUMPRIMENTO DO ENCARGO PELO LEGATÁRIO. REVERSÃO DA PROPRIEDADE AO MONTE-MOR. CONSEQUÊNCIA LÓGICA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. REFORMA. INVERSÃO DO ÔNUS SUCUMBENCIAL. RECURSO DAS AUTORAS CONHECIDO E PROVIDO.

      No sistema da livre persuasão racional, abrigado pelo Código de Processo Civil, o juiz é o destinatário final da prova, cabendo-lhe decidir quais elementos são necessários ao deslinde da causa. Não há cerceamento de defesa se a diligência requestada não se apresenta como pressuposto necessário ao equacionamento da lide.

      As hipóteses de revogação de doação com prazo anual referem-se apenas àquelas por ingratidão e que, nos casos de inexecução de encargos, tem a aplicação o prazo prescricional geral. Precedentes do STJ e inteligência dos arts. 1.184 c/c 178, § 6º, I do Código revogado, correspondente ao 559 do Código Civil em vigor.

      Aquele a quem é destinado determinado legado com a obrigação de manter o nome da empresa e da atividade empresarial como forma de homenagem póstuma ao respectivo fundador deve agir em conformidade com a vontade do testador, sob pena de revogação do ato de liberalidade, com reversão do patrimônio ao monte-mor, a ser partilhado entre os herdeiros do falecido, existentes à época de sua morte.

      Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 0000561-58.2009.8.24.0036, da comarca de Jaraguá do Sul Vara da Família, Infância e Juventude, sendo Apelante Maria Luiza Emmendorfer e outro e Apelado Alexander Lemke e outros.

      A Segunda Câmara de Direito Civil decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento para, afastada a preliminar e a prejudicial de mérito, reformar a sentença e julgar procedente o pedido inicial, invertidos os ônus sucumbenciais. Custas legais.

      O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Newton Trisotto, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Rubens Schulz. Sustentação oral pelo Dr. Udelson Josué Araldi.

      Florianópolis, 30 de agosto de 2018.

      Desembargador Sebastião César Evangelista

      Relator

      RELATÓRIO

      Cuida-se de Apelação Cível interposta por Maria Luiza Emmendorfer e outro da decisão proferida na Vara da Família, Infância e Juventude da comarca de Jaraguá do Sul nos autos do processo n. 036090005614, sendo parte adversa Alexander Lemke e outros.

      A sentença, em julgamento antecipado, declarou improcedentes os pedidos e condenou as autoras ao pagamento dos ônus de sucumbência, fixados os honorários advocatícios em 10% do valor atualizado do patrimônio reclamado (a ser oportunamente avaliado) para cada um dos procuradores da parte adversa.

      Na fundamentação, considerou-se inicialmente que seria dispensável a produção de provas em audiência, motivo por que o caso se enquadraria no art. 330, I, do CPC/1973. Assinalou-se que o caso é conexo com o inventário n. 0000374-75.1994.8.24.0036, processo que, de seu turno, ficou suspenso por onze anos durante a tramitação da ação anulatória do testamento (autos n. 000059-16.1994.8.24.0036). Consignou-se que se configura a conexão "porquanto o que aqui se postula é justamente a revogação do legado conferido pela autora da herança mediante encargo" (fl. 223). No mérito, foram afastadas as teses autorais de que (a) o legatário não teria entrado na posse do legado e (b) que o legatário teria descumprido o encargo. Afirmou-se que já na pendência do inventário, conferiu-se ao legatário autorização para a prática de atos de gestão, faculdade essa que foi exercida, demonstrando aceite do legado, bem como exercício da posse, circunstância essa que estaria comprovada pelo contrato de locação de fls. 87 a 93. Acrescentou-se que o encargo teria sido devidamente cumprido, já que, consoante documento de fl. 95, a sociedade empresária Persianas José Emmendoerfer Ltda. permanece ativa até os dias atuais. Registrou-se que se denota dos autos é que a motivação das demandantes não seria realmente a insurgência contra o descumprimento de encargo, mas sim o inconformismo com o insucesso de ação anulatória previamente aforada.

      As autoras, irresignadas, interpuseram recurso de apelação, arguindo, em preliminar, cerceamento de defesa, pois não oportunizada a produção de prova de que a real vontade da testadora teria sido desatendida.

      No mérito, alinharam os seguintes argumentos:

      a) aplicabilidade de cláusula resolutiva, pois o legatário não teria respeitado "a vontade da testadora, uma por ter autorizado que a atividade empresarial de Persianas José Emmendoerfer Ltda. fosse encerrada, e outra que permitiu a alteração do nome do estabelecimento para Moldes Artes Ltda." (fl. 242);

      b) descumprimento da disposição testamentária no momento em que firmado o contrato de locação e que a sentença, ao não reconhecê-lo, teria incorrido em ofensa aos artigos 1.710, 1.711, 1.712 e 1.713 do Código Civil de 1916, enfatizando-se que "com certeza a vontade da Sra. Lucila Emmendoerfer, não era a de que o Sr. Ingo Lemcke alugasse a empresa para que terceiros mudassem o nome da fachada da empresa assumindo as atividades fabris, agindo com desmazelo do patrimônio que tanto se pretendia preservar perante a sociedade, em respeito a história e tradição da família Emmendoerfer" (fl. 242);

      c) em consulta ao site das secretarias da fazenda Nacional e do Estado de Santa Catarina, verifica-se que a sociedade empresária tem pendência de débitos fiscais, situação que implica macula o seu nome e do seu fundador e

      d) sublinharam que a cessação das atividades deu ensejo à tentativa de aquisição da propriedade por terceiros, por meio da ação de usucapião ajuizada por Noel Scherbai.

      Em caráter subsidiário, pugnaram pela minoração da verba honorária, que teria sido fixada em valor excessivo, em violação aos parâmetros fornecidos nos §§ 3º e 4º do CPC/1973, bem como ofensa ao art. 93, IX, da Constituição da República.

      A admissibilidade do recurso foi verificada na origem, na forma do art. 518 do CPC/1973, seguindo-se a intimação da parte adversa.

      Os réus apresentaram contrarrazões em que, inicialmente, arguiram prescrição, ante o decurso do prazo de um ano, previsto no art. 559 do Código Civil de 2002, correspondente ao art. 1.184 do Código revogado, para a arguição de revogação por descumprimento de encargo. Aduziram que é pacífico o entendimento de que são analogicamente aplicáveis aos legados as normas que disciplinam encargos da doação, notadamente o art. 1.938 do CC. Destacaram que o óbito da autora da herança ocorreu em 1994, ao passo que a demanda foi ajuizada somente em 2009. Afirmaram que as apelantes não podem alegar desconhecimento, "pois são partes no inventário que tramita há aproximadamente 21 anos perante a Comarca de Jaraguá do Sul e lá foram cientificadas a respeito do alvará expedido em favor do falecido legatário (fl. 152 do inventário apenso), no qual lhe foi autorizada a prática de atos de gestão em relação ao legado recebido (fl. 255). Em relação à tese de cerceamento de defesa, aduziram que as apelantes formularam alegação genérica, sem esclarecer qual prova pretendiam utilizar e a importância desse expediente para a fase instrutória. No mérito, sustentaram que a vontade da testadora foi observada, pois o contrato de locação convencionou, em sua cláusula 5ª, a preservação da atividade empresarial (fábrica de móveis e persianas). Ressaltaram, outrossim, que a disposição testamentária permitia ao legatário até mesmo a alienação do legado a terceiros, donde se presume também o direito de locação a terceiros. Acrescentaram que a sociedade empresária Persianas José Emmendoerfer Ltda. continua ativa e com o seu nome inalterado, conforme o comprovam certidão expedida pela Jucesc e declaração do Escritório Contábil Comercial. Argumentaram que a alegação de pendência tributária em nome da empresa configura em inovação recursal, não devendo sequer ser conhecido os documentos juntados em apelação relativamente a esse fato. Por derradeiro, defenderam a manutenção da verba honorária, que afirmaram estar em conformidade com os parâmetros informados no art. 20, § 3º, do CPC/1973.

      Intimado, Noel Scherbai também apresentou contrarrazões, em que sustentou os fundamentos da sentença.

      Distribuído por prevenção ao órgão julgador (em razão do Agravo de Instrumento n. 2011.022277-2), os autos vieram conclusos ao signatário que, de plano, por meio de decisão fundamentada no art. 932, I, do CPC, abriu prazo para as partes manifestarem-se sobre a aplicabilidade, ao caso concreto, dos artigos 1.664 e 1.666 do Código Civil de 1916, juntando documentos que reputem importantes para a compreensão do substrato fático. Também conferiu-se prazo ao apelante para manifestar-se sobre a tese de prescrição levantada em contrarrazões, bem como de juntar cópia do testamento, tendo em vista a qualidade da cópia juntada aos autos.

      Em cumprimento a esse comando, as partes manifestaram-se (fls. 272/277), juntando documentos.

      Os apelados sustentam que, independentemente do enquadramento dado à cláusula testamentária, seja interpretando-a como condição seja como encargo, a vontade da testadora teria sido atendida e que o legado se aperfeiçou em favor do legatário e que eventual revogação do ato em nada irá atender a vontade da testadora, que era a de beneficiar exclusivamente o legatário e não os seus herdeiros.

      Os apelantes, por sua vez, argumentam: a) que a intenção da testadora, ao instituir o legado era homenagear publicamente o falecido pai, mediante a preservação do seu nome na fachada do prédio que abrigava a Fábrica de Persianas, interpretação que melhor corresponde à vontade da testadora, nos termos do art. 1.666 do CC; b) que a situação caracteriza-se como encargo e como tal enseja a ineficácia do legado no caso do seu descumprimento pelos legatário ou por seus herdeiros; c) que o prazo prescricional só começou a correr após a ciência do fato que autoriza a revogação do ato, ou seja, o descumprimento do encargo disposto no legado, situação somente conhecida pelas apelantes no momento da citação da ação de usucapião n. 036.08.004607-5, em 25.08.2008, não havendo, portanto, transcurso de um ano até o ajuizamento da presente demanda, em 10.2.2009.

      Em tempo, a fim de conferir igualdade de tratamento, conferiu-se prazo de 15 dias ao espólio de Lucila Emmendörfer para manifestação prévia do teor da decisão de fls. 272 a 277, uma vez que não havia sido intimado para tanto, tendo-se manifestado às fls. 375/376, oportunidade em que defendeu os fundamentos da sentença.

      Diante da informação da morte de Tereza Augusta Emmendöerfer, sua genitora, Sra. Erna Günther Emmendörfer, habilitou-se como sua única herdeira. O pedido de habilitação foi devidamente instruído e as partes, intimadas, nada opuseram ao requerimento, razão pela qual se deferiu a substituição processual pretendida, nos termos do art. 691 do CPC, passando a figurar o nome da Sra. Erna Günther Emmendörfer no lugar do espólio de Tereza Augusta Emmendörfer.

      Após, os autos vieram conclusos.

      Este é o relatório.

      VOTO

      1 O reclamo atende aos pressupostos de admissibilidade, observando-se, inicialmente, sua tempestividade. Ressalte-se que tanto a admissibilidade do recurso quanto a legalidade da decisão inquinada são analisadas neste julgamento sob o enfoque do CPC/1973, vigente à época em que proferida a sentença. O CPC/2015 tem aplicabilidade imediata desde 18 de março de 2016 (CPC, artigos 1.045 e 1.046), mas sem efeito retroativo (LINDB, artigo 6º, § 1º; STJ, REsp n. 1.404.796/SP).

      2 Trata-se de insurgência contra sentença que julgou improcedente a ação que pretendia o reconhecimento da ineficácia de legado por descumprimento de disposição testamentária e, consequente, reversão do patrimônio as herdeiras da testadora.

      As matérias objeto do recurso, uma preliminar de cerceamento de defesa e o mérito propriamente dito, envolvem questões relacionadas a comprovação do cumprimento da disposição testamentária pelo legatário e a interpretação da vontade real da testadora, serão tratadas em tópicos específicos, item 3.

      Antes, porém, passa-se ao exame de questão prejudicial, alegada em sede de contrarrazões, relacionada à prescrição, a qual, embora não tenha sido debatida na origem, envolve matéria de ordem pública e foi submetida ao contraditório nesta instância, por força dos arts. 933, caput, e 1.009, § 2º.

      2.1 Nesse particular, sustentaram os apelados que o óbito da autora da herança (testadora) objeto da disposição testamentária em discussão ocorreu em 1994, ao passo que a presente demanda foi ajuizada somente em 2009, após o transcurso do prazo de 1 ano, previsto nos arts. 1.184 c/c 178, § 6º, I do Código revogado, correspondente ao 559 do Código Civil em vigor.

      Sabe-se que a legislação civil admite a revogação da doação em duas hipóteses: a) por inexecução de encargo, na doação modal e b) por ingratidão do donatário.

      Ocorre que o entendimento jurisprudencial, firmado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, ainda na vigência do Código Civil de 1916, consolidou-se no sentido de que as hipóteses de revogação da doação com prazo anual referem-se apenas àquelas por ingratidão (arts. 1.081 e 1.087) e que, nos casos de inexecução de encargos (art. 1.080), tem a aplicação o prazo prescricional geral.

      Nesse sentido:

      DIREITO CIVIL. DOAÇÃO COM ENCARGO. RESOLUÇÃO. PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA. ART. 177, CÓDIGO CIVIL. PRECEDENTES DA SEGUNDA SEÇÃO. RECURSO PROVIDO. – Na linha de entendimento do Tribunal, a resolução de doação com encargo se conta pelo prazo previsto no art. 177 do Código Civil e não no art. 178, § 6º, I, do mesmo diploma legal. (REsp 196.345/SP, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, j. 4.12.2001)

      DOAÇÃO. DOAÇÃO MODAL. RESOLUÇÃO. PRESCRIÇÃO. A RESOLUÇÃO DE DOAÇÃO COM ENCARGO NÃO SE CONTA PELO PRAZO CURTO DE UM ANO, PREVISTO NO ARTIGO 178, PARÁGRAFO 6., I DO CCIVIL, MAS SIM PELO DISPOSTO NO ARTIGO 177 DO MESMO DIPLOMA. PRECEDENTE DO STJ. (REsp 69.682/MS, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, j. 13.11.1995)

      DOAÇÃO MODAL – INEXECUÇÃO DE ENCARGO – PRAZO PRESCRICIONAL. O PRAZO DE PRESCRIÇÃO PARA A AÇÃO TENDENTE A OBTER A REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO, POR INEXECUÇÃO DE ENCARGO, E DE VINTE ANOS. A PRESCRIÇÃO ANUAL REFERE-SE A REVOGAÇÃO EM VIRTUDE DE INGRATIDÃO DO DONATARIO. (REsp 27.019/SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, j. 10.5.1993)

      Extrai-se do voto condutor desse último precedente citado, da lavra do Ministro Eduardo Ribeiro, em que faz menção sua posição:

      Não há dúvida de que a prescrição brevis temporis se justifica, e até mesmo recomenda-se, quando se cogite de revogar doação por ingratidão do donatário. Agindo este, em relação ao doador, na forma prevista em algum dos incisos do artigo 1.183 do Código Civil, por certo que suscitará justa indignação de quem praticou a liberalidade. Não é razoável admitir-se que deixe passar prazo superior a um ano para pleitear seja efetivada a sanção a que se expôs o donatário. Quedando-se inativo, dará ensejo à suposição de que perdoou o que se houve com ingratidão. A situação é bastante diversa, tratando-se de revogação por inexecução do encargo. Na doação modal, embora subsista sempre a liberalidade, existe também um caráter oneroso. PLANIOL-RIPERT afirmam mesmo que se tem aí um contrato sinalagmático (Traité Pratique de Droit Civil Français – Librairie Génórale de Droit et de Jurisprudence – 1933 – tomo V – p. 500). o donatário assume uma determinada obrigação, cujo cumprimento pode ser-lhe exigido, salvo quando estabelecida em seu próprio benefício (Código Civil, artigo 1.180). Freqüentemente, aliás, o encargo atende a um interesse geral, podendo sua execução, morto o doador, ser postulada pelo Ministério Público. Não se percebe porque se haveria de estabelecer prazo prescricional tão curto para o caso, equiparando situações nitidamente dessemelhantes. Não é sem razão que, embora sendo comum, nas legislações estrangeiras, estabelecer-se o prazo de um ano, limita-se a incidência da norma à revogação por ingratidão. Assim, no Código Civil Alemão, $532, Código de Napoleão, artigo 957, Código Italiano, artigo 802, Código Espanhol, artigo 652.

      Tendo-se como pressuposto que o legado é também um ato de liberalidade envolvendo disposição de patrimônio, uma espécie de doação de cunho mortis causa, a legislação civil autorizou a aplicação analógica ao legado das disposições atinentes à doação. O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o conteúdo normativo do art. 1.707 do Código Civil de 1916 -"ao legatário, nos legados com encargo, se aplica o disposto no art. 1.180"- decidiu-se que a situação"não abarca o disposto no art. 1.181 do diploma legislativo em apreço, cujo parágrafo único trata especificamente da hipótese de revogação de doação por inexecução de encargo".

      Mais recentemente a orientação foi ratificada, como se percebe do precedente citado a seguir:

      Na revogação de doação por inexecução de encargo, aplica-se o prazo prescricional geral do regramento civil, não sendo aplicável o prazo anual da revogação de doação por ingratidão. (REsp 1613414/PR, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, j. 19.4.2018, DJe 25.4.2018)

      Como leciona Eduardo Ribeiro de Oliveira:

      (…) a corrente que defendia ser de um ano a prescrição, também quando se tratasse de revogação por inexecução do encargo, tinha a seu favor, em verdade, um único argumento. O artigo 178, § 6º, I, da codificação revogada, que fixava o prazo de um ano, fazia referência aos artigos 1.181 a 1.187, e parágrafo único do primeiro previa a revogação por inexecução do encargo. Não existe disposição análoga no Código vigente. A norma do artigo 559 há de ser entendida como abrangendo apenas as hipóteses dos artigos 557 e 558. (In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Comentários ao novo Código Civil. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 401)

      Importante esclarecer, como adverte a doutrina de Pablo Stolze Gagliano, em obra sobre o tema (Contrato de doação. Análise crítica do atual sistema jurídico e os seus efeitos no Direito de Família e das Sucessões. Saraiva: 2014. p. 174), que"(…) considerando não mais existir, no Código de 2002, prazo vintenário de prescrição extintiva, é forçoso convir que este será, agora, de dez anos, ex vi do disposto no art. 205 do novo diploma (correspondente ao revogado art. 177)."

      Observa-se que os dispositivos invocados pelos apelados (CC/1916, art. 1.184; CC/2002, art. 559) tratam de prazo para arguição de revogação de doação por ingratidão do donatário, de natureza decadencial, o qual se conta da data em que se teve conhecimento de qualquer dos motivos que autorizem a revogação do ato por ingratidão, hipóteses tratadas no art. 1.183 do Códex revogado, correspondente ao art. 557 do CC/2002.

      Assim, mesmo que se considerasse aplicável o prazo de um ano invocado pelos apelados, tem-se que somente se iniciaria a contar do conhecimento do fato que autorizava a revogação do ato. Nesse sentido, acolhe-se a tese defendida pelas recorrentes no sentido de que o lapso"só começou a correr após a ciência do fato que autoriza a revogação do ato, ou seja, o descumprimento do encargo disposto no legado, situação somente conhecida pelas apelantes no momento da citação da ação de usucapião n. 036.08.004607-5, em 25.08.2008, não havendo, portanto, transcurso de um ano até o ajuizamento da presente demanda, em 10.2.2009."

      Assim, em qualquer das hipóteses, não há que se falar em transcurso de prazo prescricional ou decadencial entre o conhecimento do fato que materializou o suposto descumprimento da disposição de última vontade e ação proposta.

      3 Superada, assim, a questão prejudicial, analisa-se as matérias abordadas no recurso, iniciando-se pela preliminar de cerceamento de defesa.

      3.1 A prefacial não merece guarida.

      No sistema da livre persuasão racional, abrigado pelo Código de Processo Civil de 1973, em especial em seu art. 130 (CPC/15, art. 370), o juiz é o destinatário final da prova, cabendo-lhe decidir quais elementos são necessários ao deslinde da causa.

      No caso em exame, a prova carreada aos autos mostra-se suficiente para embasar a decisão proferida. Não há cerceamento de defesa se a diligência reputada desnecessária pelo magistrado não se apresenta como pressuposto necessário ao equacionamento da lide.

      Na hipótese em análise, não se vislumbra a necessidade de reabertura da instrução para se buscar a real vontade da testadora, o que pode ser viabilizado a partir da interpretação do conteúdo do ato de disposição de última vontade e o cotejo das circunstâncias fáticas dos autos, objeto de análise do mérito.

      Afasta-se, pois, a alegação de nulidade por cerceamento de defesa.

      3.2 Para elucidar a matéria de mérito, em que se discute o cumprimento de disposição testamentária e a interpretação da vontade real da testadora ao instituir o legado, necessário transcrever o teor da clausula quarta do testamento cerrado, no que interessa ao deslinde deste feito, notadamente na parte em que se dispôs do patrimônio deixado em benefício de Ingo Lemcke (falecido em 2005):

      (…)

      4. Para o meu grande amigo INGO LEMCKE, (…) deixo o seguinte: a) a totalidade das quotas representativas, que possuo, do capital social da empresa PERSIANAS JOSÉ EMMENDOERFER LTDA., com sede nesta cidade, inscrita no CGC/MF sob o nº 84.430.412/0001-51, com contrato social devidamente arquivado na Junta Comercial do Estado de Santa Catarina em 30.11.76, sob o nº 95.256/76 e alterações posteriores (…), aí incluído todo o patrimônio da empresa acima, inclusive terrenos e benfeitorias, registrado no cartório do registro de imóveis desta Comarca sob o nº 40.817, em 30.10.73, bem como todo o maquinário, ferramentas, matéria-prima, produtos em elaboração e acabados e mais os utensílios existentes, inclusive o acervo da marcenaria. A única condição que imponho à efetivação do legado aqui constituído é a de que o Sr. INGO LEMCKE preserve a empresa com o atual nome, em homenagem ao meu falecido pai JOSÉ EMMENDOERFER, inclusive na hipótese de resolver-se encerrar as atividades fabris hoje existentes, ou aliená-las a terceiro; (…)

      Como destacado anteriormente por este signatário, não houve, durante o trâmite do processo na origem, uniformidade de tratamento sobre a qualidade da cláusula inserta no testamento no que se refere ao patrimônio deixado a Ingo Lemcke: se é uma condição resolutiva ou um encargo, matéria que não foi trabalhada na origem com profundidade, carecendo, inclusive, de expressa menção aos artigos legais aplicáveis, o que ensejou, nesta sede, a abertura de prazo para as partes manifestarem-se sobre a aplicabilidade, ao caso concreto, dos artigos 1.664 e 1.666 do Código Civil de 1916, in verbis:

      Art. 1.664. A nomeação de herdeiro, ou legatário, pode fazer-se pura e simplesmente, sob condição, para certo fim ou modo, ou por certa causa.

      Art. 1.666. Quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador.

      Os apelados manifestaram-se no sentido de que, independentemente do enquadramento dado à cláusula testamentária, seja interpretando-a como condição seja como encargo, a vontade da testadora teria sido atendida e que o legado se aperfeiçoou em favor do legatário e que eventual revogação do ato em nada irá atender a vontade da testadora, que era a de beneficiar exclusivamente o legatário e não os seus herdeiros, isto é, as suas sobrinhas.

      Os apelantes, por sua vez, argumentam: a) que a intenção da testadora, ao instituir o legado era homenagear publicamente o falecido pai, mediante a preservação do seu nome na fachada do prédio que abrigava a Fábrica de Persianas, interpretação que melhor corresponde à vontade da testadora, nos termos do art. 1.666 do CC; b) que a situação caracteriza-se como encargo e como tal enseja a ineficácia do legado no caso do seu descumprimento pelos legatário ou por seus herdeiros.

      As partes, portanto, não divergem essencialmente quanto à natureza da disposição, residindo a divergência quanto à interpretação (alcance) da vontade da testadora, nos termos do artigo 1.666 do Código Civil.

      J. M. Carvalho Santos ao fazer a distinção entre um e outro, traça como fator distintivo a natureza compulsória do ato:

      O modo, como já tivemos oportunidade de esclarecer, não se pode confundir com a condição. Enquanto a condição é suspensiva e não coercitiva, o modo é coercitivo e não suspensivo. Ninguém, em verdade, poderá obrigar o herdeiro ao adimplemento de uma condição, embora potestativa; mas qualquer interessado poderá constrange-lo à execução do encargo. (Código Civil brasileiro interpretado. 11. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986. v. 23, p. 229, 230 e 231).

      Prossegue dizendo que:

      O modus não é condição resolutiva, porque: a) a maior parecença é a que deriva do Código Civil, art. 1.181, parágrafo único, que poderia fazê-lo resolutiva tácita, mas ocorre: a condição resolutiva adere essencialmente ao negócio jurídico; a resolução opera-se ex tunc e ipso iure; no modus, a regra é não se resolver, não se revogar, o adimplemento pode ser exigido. (…) b) não cumprida a condição resolutiva, não se pode ordenar o cumprimento. Não cumprido o encargo, cabe a execução, bem como a responsabilidade pelos danos que cause o inadimplemento por culpa do obrigado. (…) c) a revogação pelo inadimplemento do modus é ex nunc, há de ser decretada pelo juiz, porque depende da violação. Apura-se a mora solvendi do onerado com o encargo (…). (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. v. 56, p. 326)

      Para que o modo seja juridicamente obrigatório, antes de tudo, é essencial que alguém tenha interesse legítimo em exigir o seu adimplemento. Sem isso, a observância do mesmo dependerá exclusivamente da pura vontade, do sentimento de honra ou do dever de consciência do instituído. Por exemplo: se o testador ordena pura e simplesmente que o herdeiro construa uma casa em tal lugar com o dinheiro da herança, este poderá desobedecer impunemente às ordens do testador. O mesmo se o testador ordena que o herdeiro mande construir um túmulo de elevado custo. Mas, se o modo, de qualquer forma, vem a beneficiar alguém, a sua execução torna-se de necessidade evidente para o instituído, porque de outra forma, ele poderá ser constrangido a executá-lo, tal como determinou o testador. (SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 11. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986. v. 23, p. 231)

      E ainda:

      Para que o modo seja juridicamente obrigatório, antes de tudo, é essencial que alguém tenha interesse legítimo em exigir o seu adimplemento. Sem isso, a observância do mesmo dependerá exclusivamente da pura vontade, do sentimento de honra ou do dever de consciência do instituído. Por exemplo: se o testador ordena pura e simplesmente que o herdeiro construa uma casa em tal lugar com o dinheiro da herança, este poderá desobedecer impunemente às ordens do testador. O mesmo se o testador ordena que o herdeiro mande construir um túmulo de elevado custo. Mas, se o modo, de qualquer forma, vem a beneficiar alguém, a sua execução torna-se de necessidade evidente para o instituído, porque de outra forma, ele poderá ser constrangido a executá-lo, tal como determinou o testador. (SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 11. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986. v. 23, p. 231)

      Não obstante, como defendeu o ilustre doutrinador,"os efeitos da revogação por inexecução dos encargos são os mesmos da condição resolutiva verificada (Cfr. BAUDRY-COLYN, obr. cit., n. 1.576; PLANIOL-RIPERT, Trasbot, cit. n. 491). Vale dizer: uma vez pronunciada a revogação, a doação é havida como se nunca tivesse existido, o que acarreta a consequência imediata de ser considerado o donatário como nunca tendo sido proprietário dos bens doados: diminuim revocatur ut ex tunc, non ut ex nunc."(SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 11. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986. v. 23, p. 433)

      Como adverte a doutrina, as consequências do descumprimento do encargo modal, em se tratando de ato de disposição de última de vontade como o legado, é a perda da herança, como uma espécie de cláusula penal por inadimplemento.

      Nesse sentido assenta Carvalho Santos, em obra já citada:

      Algumas vezes, o modo pode tornar-se eficazmente obrigatório mediante cláusula penal, a ser aplicada contra o herdeiro que não o executar fielmente. A perda da herança por inadimplemento de modo é, por assim dizer, a cláusula penal por excelência. (SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 11. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986. v. 23, p. 231).

      Nessa análise, caberá ao juiz apreciar, em cada hipótese, se a condição imposta tem o caráter de um encargo, isto é, se tem caráter de obrigação e na hipótese de se entender positivamente"é preciso apreciar a cláusula em si para apurar se a execução, dada pelo donatário, correspondeu ou não à intenção do doador."(Santos, João Manoel de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado, principalmente do ponto de vista prático. V. XVI. 13 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1991, p. 437)

      No caso em apreço, embora o uso da expressão" condição "poderia indicar diferentemente, na verdade o caso se enquadra mais como encargo, uma vez que a cláusula impõe uma obrigação ao legatário – manutenção do nome da empresa como forma de homenagear o nome do falecido pai da testadora.

      Definida a natureza jurídica da disposição de última vontade, enquadrada como uma encargo modal, passa-se a analisar, a partir do conhecimento da vontade real da testadora, se o legatário descumpriu o encargo que lhe foi imposto.

      3.3 A resposta, diferentemente do que se concluiu na sentença, é positiva: o encargo foi descumprido.

      A testadora faleceu em 1994 (cópia de certidão de óbito de fl. 10), momento em que passou a pertencer ao legatário o patrimônio legado, tendo em vista que não estava sujeito à condição suspensiva ou a termo inicial, nos termos dos arts. 1.690 e 1.692 do Código em vigor à época, equivalente ao art. 1.923 do CC/2002, in verbis:

      1916:

      Art. 1.690. O legado puro e simples confere, desde a morte do testador, ao legatário o direito, transmissível aos seus sucessores, de pedir aos herdeiros intituidos a coisa legada.

      Parágrafo único. Não pede, porém, o legatário entrar, por autoridade própria, na posse da coisa legada.

      Art. 1.692. Desde o dia da morte do testador pertence ao legatário a coisa legada, com os frutos que produzir.

      2002:

      Art. 1.923. Desde a abertura da sucessão, pertence ao legatário a coisa certa, existente no acervo, salvo se o legado estiver sob condição suspensiva.

      § 1o Não se defere de imediato a posse da coisa, nem nela pode o legatário entrar por autoridade própria.

      § 2o O legado de coisa certa existente na herança transfere também ao legatário os frutos que produzir, desde a morte do testador, exceto se dependente de condição suspensiva, ou de termo inicial.

      Nos termos do art. 1.180 do Código Civil de 1.916, correspondente ao art. 553 do código em vigor, o donatário, leia-se legatário, é obrigado a cumprir o encargo que lhe foi imposto como condição do ato de liberalidade. No caso em apreço, a cláusula impôs uma obrigação ao legatário – manutenção do nome da empresa como forma de homenagear o nome do falecido pai da testadora.

      O Juiz, na condição de intérprete, deve aprofundar-se na busca da real vontade/intenção do testador, pois, como destacado pela doutrina:

      A vontade do testador é tudo. O fim precípuo da interpretação é descobri-la, esclarecê-la, supri-la, esclarecendo-se leal e honestamente o que o testador quis dizer. Por aí já se vê que não apresenta papel decisivo o modo ou a forma pela qual o testador disse: o que interessa saber é se ele disse o que queria dizer, ou se, ao invés, não se expressou bem, empregando palavras que não traduziram bem seu desejo ou sua vontade. (SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 11. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986. v. 23, p. 239).

      Deve-se ter em mente que deverá prevalecer a interpretação mais favorável à vontade do testador, nos termos do art. 1.666 do CC/1916 (CC/2002, arts. 112 e 1.899).

      Na hipótese dos autos, a análise do cumprimento do encargo deve se dar a partir da interpretação do significado da expressão utilizada na cláusula testamentária – homenagem – que significa"expressão ou ato público como mostra de admiração, deferência ou respeito por alguém."

      É evidente que a intenção da testadora ao dispor de parte do seu patrimônio ao legatário era a de homenagear o nome do pai, fundador da empresa cujo patrimônio foi objeto do legado. Indaga-se: o que fez o legatário para atender a vontade da testadora?

      Analisando os autos verifica-se que a atuação do legatário, na hipótese dos autos, afasta-se, em muito, a de alguém que queira prestar homenagem póstuma ao fundador da empresa.

      Como destacado na sentença, já na pendência do inventário, conferiu-se ao legatário autorização para a prática de atos de gestão, faculdade essa que foi exercida em vida, demonstrando aceite do legado, bem como exercício da posse, externada por meio do contrato de locação de fls. 87 a 93.

      No entanto, diferentemente da conclusão adotada na origem, o fato de a sociedade empresária Persianas José Emmendoerfer Ltda. ter permanecido ativa na Junta Comercial, conforme documento de fl. 95, não significa que o encargo tenha sido cumprido. Ao contrário.

      Verifica-se que, ao assumir a posse dos bens deixados pela testadora, o legatário firmou contrato de locação do imóvel (fls. 87/91) onde era exercida a atividade empresarial de Persianas José Emmendoerfer Ltda. – ME, cedendo, mediante pagamento de aluguel simbólico (R$ 500,00), o uso do prédio e dos maquinários para fins comerciais a outra empresa, Moldes Artes Indústria e Comércio de Móveis e Persianas Ltda – ME, para ali instalar fábrica de móveis e persianas.

      Ora, é evidente que o legatário, ao tomar posse da empresa que lhe foi deixada, não tomou providências compatíveis com a vontade da testadora, que era a de justamente homenagear o nome do falecido pai. É óbvio que a condição imposta não se resumia simplesmente à manutenção do nome da empresa na Junta Comercial, mas ao público em geral, como forma de homenagear o nome do seu fundador de forma póstuma.

      Não se mostra coerente que o legatário, ao receber quotas sociais e o patrimônio de uma empresa sob a única condição de conservar o atual nome, como primeiro ato de gestão, alugue o estabelecimento comercial a terceiro e, com isso, encerre as atividades que lá funcionavam, permitindo, ainda que para o público em geral, a alteração do nome do estabelecimento para Moldes Artes Ltda.

      É fato incontroverso, ainda, tal como ponderado no recurso da parte autora, que a cessação das atividades deu ensejo à tentativa de aquisição da propriedade por terceiros, por meio da ação de usucapião ajuizada por Noel Scherbai. As informações trazidas em sede recursal evidenciam, ainda, que a sociedade empresária objeto do legado tem pendência de débitos fiscais de IPTU, devidamente inscritos em dívida ativa e objeto de execuções fiscais. Ainda que os mencionados débitos sejam posteriores à morte do legatário, o fato deixa transparecer que nem os próprios herdeiros do legatário fizeram questão de fazer prevalecer a vontade da testadora, dando azo a atos que certamente maculam o bom nome do fundador da empresa objeto do testamento.

      Nesse cenário, conclui-se que o descumprimento da obrigação imposta ao legatário ocorreu desde o primeiro ato de gestão e perdura até os dias atuais.

      4 Considerando que a morte da testadora ocorreu na vigência do Código Civil de 1916, aplicáveis à hipótese os artigos 1.707, 1.180 e 1.181, cuja interpretação conjugada, na visão do signatário, permite a revogação do ato de disposição de última vontade em caso de o legatário falecido ter descumprido o encargo.

      Não se olvida que a doutrina diverge quanto às soluções jurídicas colocadas à disposição dos interessados na hipótese de inexecução do encargo, sobretudo quando não expressamente disposto pelo testador a possibilidade de revogação.

      Luiz Paulo Vieira de Carvalho, ao interpretar a legislação civil vigente e a revogada, expôs a divergência que grassa na doutrina pátria:

      Em se tratando de inexecução do encargo ou modo, se o ato for inter vivos, vislumbram-se três soluções: (i) o intérprete procurará na legislação as consequências dessa inexecução; (ii) o interessado será instado a cumprir o modo, ou seja, o dar, fazer ou não fazer, determinado pelo doador até por preceito cominatório, nos termos do parágrafo único do art. 553 do Código Civil em vigor (correspondente ao parágrafo único do art. 1.180 do Código Civil de 1916); e (iii) poderá o próprio doador revogar a liberalidade depois de notificar o donatário, tendo sido assinalado um prazo razoável para cumprir o ônus ou a obrigação, nos termos dos arts. 555 e 562 do Código Civil atual e art. 1.181, parágrafo único do Código Civil de 1916.

      Porém, em se tratando de disposição testamentária modal, portanto, de cunho causa mortis (ou mediante disposição codicilar, só cabível, in casu, em relação ao legatário), havendo inexecução do encargo, confirmada a mora do beneficiário, controvertia e ainda controverte a doutrina pátria, sobre quais caminhos podem ser seguidos pelo interessado.

      Parte de nossos autores manifestava o seguinte entendimento: conforme os arts. 1.707 e 1.181, parágrafo único, do Código Civil de 1916, descumprido o modo e confirmada a mora do beneficiado, os sucessores do testador ou aqueles que seriam chamados no lugar do beneficiado, poderiam tornar caduca a disposição testamentária mesmo que o testador não tivesse inserido expressamente na cédula de última vontade a pena de revogação por descumprimento do encargo.

      Na atualidade, agora nos moldes cristalinos estampados nos arts. 1.938 e 555, 2ª parte, do Código Civil atual, a permitirem ao legatário (e consequentemente, também ao herdeiro) em caso de inadimplemento do encargo, realizar aquilo que é cabível ao donatário modal, seus defensores insistem, a nosso ver com razão, na mesma possibilidade.

      Todavia, outra corrente, sustentada por juristas não menos ilustres, argumentava que o art. 1.707 do Código Civil de 1916 fazia menção apenas ao art. 1.180, e não ao parágrafo único do art. 1.181 do mesmo Código Civil de 1916, este último sim autorizativo da revogação, a significar que, caracterizada a inexecução do encargo expresso em disposição de última vontade, os herdeiros do testador, ou aqueles que seriam chamados à herança, só poderiam exigir o seu cumprimento, e não a revogação da cláusula testamentária, em obediência ao sempre aludido princípio da obediência à vontade do testador." (Direito das Sucessões. São Paulo: Atlas, 2014. p. 630, 631).

      Independentemente da posição que se abrace, no caso em apreço, dado o tempo transcorrido, não se vislumbra a possibilidade de perseguir o cumprimento do encargo, inclusive, tendo em vista o falecimento do legatário. Não obstante, tal como verificado no tópico anterior, o legatário faleceu sem dar cumprimento à vontade da testadora, situação que perdurou no tempo, permitindo aos herdeiros desta pleitear a revogação do legado.

      Nessa hipótese, há duas soluções excludentes: a reversão ao monte-mor ou ao substituto indicado (se houver indicação), como leciona Sílvio de Salvio Venosa:

      O benefício poder ser revogado, ou melhor, anulado, por descumprimento do encargo, dependendo de sua natureza. Há muita proximidade do encargo com a condição, matéria que é vista na Parte Geral. Se anulado o legado por por descumprimento do encargo, a deixa irá para o substituto indicado, se houver, ou devolve-se ao monte hereditário. (p. 2.223)

      Não cumprido o encargo e não havendo substituto indicado na disposição testamentária, a coisa legada será devolvida ao monte hereditário para ser partilhado entre os seus sucessores da testadora, vivos ao tempo da sua morte.

      5 Por conseguinte, julga-se procedente o pedido inicial para tornar ineficaz o ato de disposição de última vontade por descumprimento de encargo e, por consequência, decretar a reversão do patrimônio objeto de legado aos sucessores da testadora.

      Com a reforma da sentença, devem ser invertidos os ônus sucumbenciais, condenando-se os demandados, ora apelados, ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, estes arbitrados em 15% sobre o valor atualizado da causa, a teor do art. 85, §§ 2º e 8º, do CPC (CPC/73, art. 20, § 3º e § 4º).

      6 Por todo o exposto, conhece-se do recurso e dá-se-lhe provimento para, afastada a prejudicial de mérito, formulada nas contrarrazões, reformar a sentença a fim de julgar procedente o pedido inicial, invertidos os ônus sucumbencial, na forma explicitada no voto.

      Este é o voto.

      Gabinete Desembargador Sebastião César Evangelista

      Fonte: IBDFAM

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