Particularidades sobre o interesse e a legitimidade recursal no processo penal

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      Recurso é o meio de provocar o reexame de uma decisão pela mesma autoridade ou por outra superior, visando obter sua reforma ou invalidação. Trata-se de modalidade do próprio direito de ação, com natureza jurídica de ônus processual – a parte não está obrigada a recorrer, mas, não o fazendo, sujeita-se aos efeitos da sucumbência. O princípio do duplo grau de jurisdição não se encontra expresso na Constituição Federal, mas decorre da estrutura escalonada do Poder Judiciário, estando implícito naquele texto; ainda assim, não se trata de um princípio absoluto, pois há casos em que a parte não tem direito ao reexame da decisão por um órgão superior, v.g., nas hipóteses de competência originária do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I). Poderíamos ainda citar os casos de competência originária dos próprios tribunais estaduais ou regionais federais, nos quais a possibilidade de impugnação esgota-se nos recursos constitucionais (extraordinário, especial ou ordinário constitucional), sem amplo exame do conjunto probatório, o que esvazia – e muito – o duplo grau de jurisdição.

      Dois são os fundamentos do princípio do duplo grau de jurisdição: o primeiro, psicológico, considera a possibilidade da decisão judicial ser injusta, ilegal ou até teratológica, admitindo-se assim a sua reforma ou invalidação; já o segundo tem natureza política, servindo como instrumento de controle do ato estatal denominado jurisdição (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, Teoria Geral do Processo, 1998, p. 74-75).

      O recurso está subordinado a pressupostos intrínsecos (cabimento, legitimidade e interesse) e extrínsecos (tempestividade, preparo, regularidade formal e inexistência de fatos extintivos ou impeditivos do direito de recorrer), conforme lição de Marcus Vinicius Rios Gonçalves (Novo Curso de Direito Processual Civil, 2011, v. 2, p. 60-72). Cuidaremos aqui do interesse e da legitimidade, traçando as peculiaridades do sistema recursal no âmbito processual penal, mediante uma abordagem interdisciplinar.

      Possuem legitimidade recursal o Ministério Público, o querelante, o réu, seu procurador, o defensor e o assistente de acusação, este último podendo recorrer contra a decisão de impronúncia, de extinção da punibilidade e nas hipóteses de apelação supletiva (CPP, art. 584, § 1º, e 598). É possível que haja divergência entre a vontade do réu e a do defensor, quanto à interposição do recurso; neste caso, há três orientações que buscam solucioná-la:

      a) Prevalece a vontade do defensor, uma vez que ele possui melhor conhecimento técnico para avaliar as vantagens e desvantagens do recurso; aliás, a Súmula nº 705 do Supremo Tribunal Federal dispõe que “a renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento de apelação por este interposta”;

      b) Predomina a vontade do réu, pois, sendo ele capaz, pode deixar de recorrer, ou ainda desistir de recurso interposto por ele ou por seu defensor, enquanto este necessita de poderes especiais (FARIA apud CAPEZ, Curso de Processo Penal, 2011, p. 733);

      c) Prevalece a vontade daquele que quiser recorrer, em homenagem ao princípio do duplo grau de jurisdição, orientação com a qual concordamos, pois, resolvendo-se a divergência em favor do recurso, não há possibilidade de qualquer prejuízo ao acusado, uma vez que o princípio da vedação da reformatio in pejus impede que sua situação seja agravada pelo tribunal (CPP, art. 617).

      Já o interesse recursal está relacionado à sucumbência, que é todo prejuízo sofrido pela parte em razão de um julgamento, não se confundindo com o ônus da sucumbência, que é a responsabilidade pelas despesas processuais. Em regra, o ônus da sucumbência decorre da sucumbência, mas há exceções nas quais a parte é sucumbente, porém sem arcar com o ônus da sucumbência, v.g., o Ministério Público e o beneficiário da justiça gratuita. Uma vez demonstrado o interesse recursal, costuma-se afirmar que será devolvido ao mesmo órgão prolator da decisão ou a outro hierarquicamente superior o reexame da questão, permitindo assim a sua reforma ou invalidação. No âmbito processual civil, em regra, o que não for impugnado não poderá ser apreciado no julgamento do recurso, de acordo com o princípio tantum devolutum, quantum appellatum (CPC, art. 1.013, caput). Como lecionam Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, “exceção ao princípio do efeito devolutivo ocorre com a possibilidade de o tribunal conhecer de questões discutidas e debatidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro (CPC 515 § 1.º), bem como de todos os fundamentos da ação ou defesa (515 § 2.º), configurando uma espécie de benefício comum que dá ao efeito devolutivo um caráter bilateral, cujo limite é a proibição da reformatio in peius” (Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 2013, p. 976 – com referência aos dispositivos do CPC/1973). O princípio da proibição da reformatio in pejus, por sua vez, impede que o tribunal, no julgamento de recurso exclusivo da parte, piore sua situação, tendo como fundamento “dois princípios que no caso vivem harmônicos e inseparáveis: o princípio da sucumbência e o princípio dispositivo” (SANTOS, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 1999, v. 3, p. 112).

      Contudo, no processo penal, os princípios tantum devolutum, quantum appellatum, assim como a proibição da reformatio in pejus, devem ser analisados de maneira peculiar, conduzindo a situações que, sob a ótica estritamente processual civil, poderiam ser consideradas ilegais. Assim, no julgamento de apelação, o tribunal pode absolver o réu quando seu recurso limitar-se ao pedido de redução da pena, pois, ao contrário do que se observa no processo civil, o princípio tantum devolutum, quantum appellatum deve ser concebido com reservas, cedendo diante dos princípios do favor rei e da busca da verdade real. Dessa forma, não há empecilho para que o tribunal absolva o réu quando seu apelo cingir-se ao questionamento da pena ou de outras matérias periféricas.

      Pelas mesmas razões e sem embargo de respeitáveis opiniões em sentido contrário (MIRABETE, Processo Penal, 2006, p. 684), é possível a reforma da sentença condenatória para absolver o acusado em recurso exclusivo do Ministério Público (reformatio in melius), pois o Código de Processo Penal veda apenas a reformatio in pejus, ou seja, a possibilidade do tribunal agravar a situação do acusado em recurso exclusivo da Defesa (art. 617). Neste sentido vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça:

      “1. Esta Corte firmou compreensão no sentido de que é admitida a reformatio in melius, em sede de recurso exclusivo da acusação, sendo vedada somente a reformatio in pejus.
      2. A concessão da ordem, de ofício, para absolver o Réu, não se deu por meio da análise do recurso constitucional, mas sim nos autos de recurso de apelação. Divergência jurisprudencial não comprovada.
      3. Ademais, é permitido à instância revisora o exame integral da matéria discutida na demanda, face ao amplo efeito devolutivo conferido ao recurso de apelação em matéria penal.
      4. Recurso especial a que se nega provimento” (REsp 628971/PA, Rel. Min. Og Fernandes, Sexta Turma, j. 16.03.2010).

      Uma derradeira questão que gera certa controvérsia e que certamente causaria estranheza se analisada sob o enfoque da ciência processual civil, é a possibilidade do Ministério Público recorrer contra decisão condenatória. Há três entendimentos sobre o tema:

      a) O Ministério Público não pode recorrer neste caso, pois lhe falta interesse recursal, na medida em que ele defende o direito de punir do Estado, ainda que tenha pleiteado a absolvição do réu (MARQUES, Elementos de Direito Processual Penal, 1998, v. 4, p. 200);

      b) Deve ser admitido o recurso, “pois o Ministério Público é parte imparcial, e, mesmo quando ocupa o polo ativo da relação jurídica processual, não deixa de ser fiscal da lei. No entanto, se o representante ministerial pede a condenação e o juiz, acolhendo integralmente esse pedido, condena o réu, faltará sucumbência, e, por conseguinte, interesse para o recurso em favor do condenado” (CAPEZ, op. cit., p. 741);

      c) O membro do Ministério Público possui interesse para recorrer em qualquer caso, ainda que o juiz tenha acolhido seu pedido de condenação, preservando-se, assim, sua independência funcional (STF, HC 69957/RJ, Rel. Min. Néri da Silveira, Segunda Turma, j. 09.03.1993).

      Aderimos ao segundo entendimento. Por um lado, o Ministério Público não pode ser considerado uma parte comum, dotada de parcialidade e com a missão de buscar condenações a qualquer custo, tanto que, antes de enumerar suas funções, o legislador constitucional incumbiu-lhe a defesa da ordem jurídica no art. 127, caput, função perfeitamente compatível com a possibilidade deste órgão recorrer em favor do acusado. Por outro lado, o princípio da independência funcional não pode se sobrepor ao da unidade do Ministério Público e às regras processuais relacionadas à sucumbência (CF, art. 127, § 1º, e CPP, art. 577, parágrafo único). Assim, se um membro do Parquet requereu a condenação do acusado e o pedido foi acolhido, seria ilógico permitir que seu colega, tendo ciência da sentença, pudesse interpor apelação para pleitear sua absolvição.

      Através de uma abordagem interdisciplinar envolvendo o Direito Processual Penal e Processual Civil, verificamos que os princípios relacionados aos recursos atuam de maneira distinta em cada uma dessas disciplinas, concluindo-se que no processo penal, a atuação do princípio do favor rei admite situações jurídicas que, certamente, não teriam qualquer cabimento na esfera processual civil, o que é plenamente justificado pela possibilidade da decisão criminal influir no direito de liberdade do acusado.

      Thales Ferri Schoedl


      Professor de Direito Penal e Processual Penal no Curso Preparatório VFK Educação, e examinador de bancas de exame oral simulado nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo, Tributário (Parte Geral), Penal, Processual Penal e Empresarial, na mesma instituição. Professor de Direito Penal, Processual Penal e Administrativo da Academia Del Guércio SPCM. Advogado nas áreas criminal, tribunal do júri, improbidade administrativa, imobiliário, responsabilidade civil e funcional. Autor e coautor de obras jurídicas, especialmente pela YK Editora. Ex-promotor de justiça do Estado de São Paulo. Graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2001). Especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2007). Mestrando concursado em Desenvolvimento e Gestão Social pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi professor voluntário na Associação Cruz Verde, destinada a portadores de paralisia cerebral grave (2007/2014).

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