Artigo – A Transexualidade pela Trans Jurisdição: uma Leitura da ADI nº 4.275/DF e do Provimento nº 73 do CNJ – Jairo Manoel Ribeiro.

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      Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Com uma constância que chega às raias da teimosia, as sociedades do ocidente moderno responderam afirmativamente a essa pergunta. Situavam obstinadamente essa questão do “verdadeiro sexo” numa ordem de coisas onde se podia imaginar que só contam a realidade dos corpos e a intensidade dos prazeres¹.

      1. Introdução

      “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando”². As palavras de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, acenam para a travessia inseparável da vida: as transmutações que a compõe. Cada sujeito a experimenta na sua singularidade, a seu tempo, a seu modo. E é a partir das incertezas do ser, que este artigo convida a pensar sobre a transexualidade.

      Nosso propósito é pensar em um discurso jurídico para além do corpo visível, muito além desse “olhar” constituído por uma epistemologia binária que corta o corpo em duas partes e, em seguida, força o sujeito a escolher uma delas.

      Desse modo, equivocando a construção política, médica e jurídica do colonialismo patriarcal sedimentado na diferença biológica, a alteração do prenome e do sexo tornou-se uma prática de transição que posiciona o corpo vivo, previamente, naquilo que se caracteriza como humano.

      2. Uma nova paradigmática jurídica.

      Em 1º de março de 2018, o Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.275/DF3, reconheceu a possibilidade dos transgêneros alterarem o nome e o sexo sem exigência do procedimento cirúrgico e sem autorização judicial. Surgiu então um arquétipo jurídico de autodeterminação do sujeito, compatível com os direitos humanos. Precursora no ordenamento jurídico brasileiro, a ADI n.º4.275/DF atentou-se para as necessidades sociais enfrentadas pelas pessoas transexuais.

      Neste exame inédito, a ADI n.º 4.275/DF denunciou o “controle” e a “supressão” da diferença pelo sempre igual e pelo homogêneo, apontando, assim, para a emergência de uma nova concepção sistêmica em torno da sexualidade. Portanto, a inovadora visão jurídica da realidade trans não se baseou em uma estrutura rígida, mas em manifestações de identidades flexíveis.

      Por seu turno, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a liberdade como um direito de todos e ainda acrescentou a irrazoabilidade jurídica ao exigir uma identidade civil em conformidade com o corpo biológico. Esta nova descrição jurídica de identidade civil diz respeito à individualidade e autonomia dos sujeitos.

      Desvelou-se, portanto, que o discurso jurídico tende à inclusão em seu campo e não à submissão a tirania do que se apregoa como sentimento heterossexual majoritário. Trata-se, em verdade, de preservar a espontaneidade da personalidade dos indivíduos, em especial das pessoas trans que têm seus direitos violados.

      No imaginário social, a representação do sujeito sexuado se dá numa performance fixa, binária/naturalista/biológica, o que dificulta ainda mais a proteção dos direitos da personalidade inerente a qualquer manifestação identitária. Donde se infere a importância de tutelar a liberdade e a “espontaneidade” sexual dos indivíduos: via mais segura e eficaz para garantir o direito das pessoas transgêneras de não sofrer intervenções jurídicas e estatais que as afetem consideravelmente, tal como a decisão de exigir procedimento cirúrgico para a retificação de prenome e sexo.

      A autonomia dos indivíduos é um atributo de grande relevância para o direito de personalidade e assegura a liberdade da vontade identitária. Essa vontade livre de se identificar à maneira do próprio reconhecimento, compreendida como um bem legítimo do Direito, é indispensável para o integral desenvolvimento da personalidade dos sujeitos e, por isso, não deve ser estabelecido qualquer tipo de restrição ou normalização de condutas certas ou erradas em torno da identidade dos indivíduos. Em sintonia com essa premissa basilar, o Ministro Marco Aurélio enfatizou que a “democracia não é ditadura da maioria”4.

      Ao longo do tempo, houve uma frenética obsessão para suprimir pessoas trans a um sistema de padronização jurídico-discriminatório, conduzido rigorosamente e destinado não contra os supostos “anormais” criminalizados, mas, sim, contra indivíduos inocentes que não apresentavam e não apresentam riscos nenhum a si ou a terceiros.

      A argumentação jurídica discriminatória e patologizante, criticada pelo Ministro do STF, não oferece nenhum acesso à razoabilidade. Marco Aurélio foi incisivo ao afirmar que, de “tão óbvio, pode haver o risco de passar despercebido o fato de não subsistir o regime democrático sem a manutenção das minorias, sem a garantia da existência destas, preservados os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente”5.

      Portanto, a decisão do STF defendeu a liberdade sexual como direito de autodeterminação, livre de qualquer intervenção jurídica ou estatal, e serviu e serve de estímulo para que as decisões judiciais, no campo da sexualidade, sejam mais “reflexivas” e menos “determinantes”.

      3. Reflexões do Provimento nº 73 do CNJ.

      Com a decisão do Supremo Tribunal Federal autorizando pessoas trans a substituir o prenome e o sexo diretamente nas Serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais, os Oficiais das Serventias demonstraram certa resistência diante da retificação, tendo em vista a ausência de uma regulamentação sobre as ditas alterações. Tanto que, para a emissão da nova certidão, cada Serventia adotava procedimentos diferentes, de acordo com os próprios critérios estabelecidos por seus respectivos Oficiais ou em consonância com portarias e provimentos de âmbito municipal ou estadual.

      Assim, para simplificar e desburocratizar as alterações do prenome e sexo, a Corregedoria Nacional de Justiça emitiu o Provimento n.º 73 que as regulamentou no âmbito do Registro Civil, de sorte que também os Cartórios, ao realizarem as retificações, passaram a ratificar a pluralidade vital da vida.

      4. Conclusão

      A retificação do nome e do sexo junto ao Registro Civil, independentemente de autorização judicial, representa a primazia dos direitos fundamentais. Portanto, constata-se a função indispensável dos Cartórios na desjudicialização das identidades trans.

      Não há verdade biológica e não há verdade do sexual: há o não terminado, o “sentimento indefinido”, a indecidibilidade representacional, como aquilo que emerge entre Riobaldo e Diadorim, em Grande Sertão: Veredas. A travessia é isso: o travessão que nos ultrapassa.

      Referências.

      FOUCAULT, Michel. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Tradução: Irley Franco. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982. (Coleção Presença).

      ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

      _______ Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275/DF. Pleno. Relator: Ministro Marco Aurélio. Data de julgamento: 01/03/2018. Data da Publicação: 07/03/2019.

      _______Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 1351-3. Pleno. Relator: Ministro Marco Aurélio. Data de julgamento: 07/12/2006. Data da Publicação 29/06/2007.

      Notas.

      [1] FOUCAULT, Michel. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Tradução: Irley Franco. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982. (Coleção Presença). p. 1.

      [2] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 24.

      [3] _______ Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275/DF. Pleno. Relator: Ministro Marco Aurélio. Data de julgamento: 01/03/2018. Data da Publicação: 07/03/2019. Disponível: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur399205/false. Acesso em 27/09/2020.

      [4] _______Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 1351-3. Pleno. Relator: Ministro Marco Aurélio. Data de julgamento: 07/12/2006. Data da Publicação: 29/06/2007. Disponível: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur90910/false. Acesso em 27/09/2020.

      [5] Ibidem.

      Jairo Manoel RibeiroBacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UNIVAP – Universidade do Vale do Paraíba. Primeira colocação de monografia inédita no prêmio “Márcio Thomas Bastos”, sobre tema livre de Direito no ano de 2020, da Faculdade de Direito da UNIVAP. Foi Oficial e Tabelião Substituto no Cartório de Registro Civil e Tabelionato de Notas de Santo Antônio do Pinhal -SP. Atuou como escrevente no Tabelião Del Guércio, em Itaquaquecetuba-SP.

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