Artigo – O “burocrático” Títulos e Documentos versus o efeito backlash da MP 1.085/2020 – Lourival da Silva Ramos Júnior.

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    “10 Artigos Legais Essenciais para conhecer o Direito Notarial e Registral”

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      A autora francesa Mireille Delmas-Marty, no seu livro “Le flou du droit: Du Code Pénal aux Droits de l’homme” (A vagueza do direito: do Código Penal aos Direitos da Pessoa Humana, PUF, 2004, p. 69), descreveu a difícil compreensão de norma penal pela “técnica de reenvio”, ou seja, o conteúdo de norma primária é definido por outras normas secundárias, deixando o “direito penal burocrático”. Em razão disso, será necessária uma leitura das normas primárias e secundárias, a fim de evitar má compreensões.

      Essa “técnica de reenvio” também é utilizada em decisões judiciais, pois, embora facilite a condensação de ideias, acaba dificultando o entendimento das decisões primárias e/ou secundárias, especialmente se o ledor não tem prévio conhecimento delas. Por isso, é recomendável a leitura sistemática das referidas decisões, ainda que seja chato e demorado!

      Assim, tomar-se-á uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como estudo de caso, para demonstrar a necessidade de leitura sistemática, e não apenas de suas ementas, a fim de evitar compreensões equivocadas do objeto da lide, em especial as de registros públicos.

      No caso, usar-se-á o Recurso Especial nº 1.829.641 – SC, julgado pela 3ª turma do STJ, que citou outras decisões secundárias (inclusive decisão da 2ª seção do STJ), para decidir pela desnecessidade de inscrição de contrato de compra e venda com reserva de domínio, em cartório de Títulos e Documentos (RTD), para ter efeito na recuperação judicial.

      Ocorre que, numa leitura açodada, sem a devida atenção às peculiaridades das decisões primárias/secundárias – ainda que sejam análogas –, o ledor poderá incorrer em erronia, quando chegar a seguinte ilação genérica: é desnecessária a constituição de alienação fiduciária de bens móveis no cartório de Registro de Títulos e Documentos.

      Delimitado o problema, será analisado, com mais vagar, o Recurso Especial nº 1.829.641 – SC, julgado pela 3ª turma do STJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, publicado no DJe 05/09/2019, cujo tema é Recuperação judicial – compra e venda com reserva de domínio – RTD, tendo o seguinte destaque: embora sem registro no cartório de Registro de Títulos e Documentos (RTD), é válido o contrato de compra e venda com cláusula de reserva de domínio, para ter efeito na recuperação judicial.

      O contrato de compra e venda com cláusula de reserva de domínio é aquele em que o vendedor preserva a propriedade da coisa alienada consigo até que ocorra o pagamento integral do preço estipulado (art. 521 do CC/02), devendo ser registrado em RTD, para valer contra terceiros (art. 522 do CC/02 c/c art. 129, n.º 5, da Lei n. 6015/73).

      Note-se que, embora esse tipo de contrato aproxime-se da propriedade fiduciária, em razão do desdobramento da posse, a diferença entre eles é mais evidente, pois, enquanto na reserva de domínio, há apenas duas pessoas (comprador e vendedor), sem transmissão imediata da propriedade; na alienação fiduciária, ao revés, é possível a participação de três pessoas no negócio (vendedor, comprador e financiador), com a transmissão de propriedade resolúvel em nome do credor fiduciário (financiador), até o pagamento integral do débito pelo devedor fiduciante (Cf. Recurso Especial nº 1.829.641 – SC).

      No caso, quando a 3ª turma julgou o REsp nº 1.829.641 – SC, cujas partes não eram instituição financeira ou equiparada (art. 17 da Lei Federal n.º 4.595/1964), entendeu que os créditos, oriundo do contrato de compra e venda com reserva de domínio, não estavam sujeitos ao soerguimento, nos termos do § 3º do art. 49 da Lei n. 11.101/2005.

      Ademais, a relatora daquele Resp lembrou que, “muito embora não haja precedentes do STJ tratando especificamente da matéria objeto deste recurso, verifica-se que esta 3ª Turma, em situações análogas – versando sobre direitos de crédito cedidos fiduciariamente –, já firmou posição no sentido da desnecessidade do registro para sua exclusão dos efeitos da recuperação judicial do devedor (REsp 1.412.529/SP, DJe 2/3/2016 e REsp 1.592.647/SP, DJe 28/11/2017)”

      Contudo, deve-se tomar cuidado com decisões análogas (secundárias), especialmente quando o ledor não conhece tais julgados, em especial de registros públicos. Para tanto, explicar-se-á apenas o REsp 1592647/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, DJe 28/11/2017, que trata de titularidade fiduciária relativa a bens móveis fungíveis consumíveis (art. 1.368-A c/c o art. 66-B da Lei n. 4.728/65), os quais não precisam de inscrição em cartório de Registro de Títulos e Documentos, conforme deixa expressa a ementa do REsp 1592647/SP:

      “2 – O propósito recursal é definir se os créditos cedidos fiduciariamente ao recorrente necessitam de prévio registro no Cartório de Títulos e Documentos competente para serem excluídos dos efeitos da recuperação judicial da devedora-cedente.

      3 – A alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou títulos de créditos não estão submetidas aos efeitos da recuperação judicial (inteligência do art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05). Precedentes.

      4 – Ao sistema especial que engloba o instituto da alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou títulos de créditos – hipótese dos autos – não se aplica a norma do art. 1.361, § 1º, do CC, pois esta incide somente sobre propriedade fiduciária de coisa móvel infungível.

      5 – A sujeição da propriedade fiduciária, conforme sua natureza, à respectiva disciplina legal é determinação expressa do próprio Código Civil, segundo o qual "as demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária" (vale dizer, quando não se tratar de negócio fiduciário envolvendo bem móvel infungível) "submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial" (art. 1.368-A).

      6 – À espécie, portanto, incide a disciplina normativa especial da Lei 4.728/65, que não exige o registro em cartório como elemento constitutivo da propriedade ou titularidade fiduciária.”

      A título de curiosidade, ressalte-se que, à luz do art. 129, n. 10º, da Lei n. 6.015/73, alterado pela MP 1.085/2021, e caso seja convertida em lei, o citado precedente da 3ª Turma do STJ não será alterado, pois tudo indica que essa MP não se refere à “bem móvel fungível consumível” (dinheiro) – que dispensa à inscrição em RTD –, mas, na realidade, parece que se trata de “bem móvel infungível” (veículo, por exemplo), que tem a previsão legal de registro em RTD.

      Noutros termos, em se tratando de instituição financeira credora, a alienação fiduciária de bens móveis consumíveis (dinheiro), especialmente nos contratos de mútuo (art. 86 c/c art. 586, ambos do CC/02), são regidos pela Lei de Mercado de Capitais (Lei n. 4.728/65), que dispensa o registro em RTD; ao passo que, na alienação fiduciária de bens móveis infungíveis (veículos), será pelo Decreto-Lei n. 911/69 e art. 1.361 do CC/02, cujo o § 1º deste artigo do CC, que determina a inscrição no RTD.

      Aliás, a 2ª seção do STJ pacificou o assunto a respeito da prescindibilidade do RTD, ainda que se trate de cessão fiduciária de título de crédito (art. 66-B da Lei n. 4.728/65), ao dizer que, na falta de inscrição no cartório de RTD, não haverá repercussão na cessão fiduciária de título de crédito, nos termos do § 3º do art. 49 da Lei n. 11.101/2005 (REsp 1629470/MS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, 2ª Seção, DJe 17/12/2021).

      Portanto, quando se trata de alienação de bens móveis consumíveis, o seu contrato não está sujeito ao registro em RTD.

      Após essa digressão, volta-se novamente ao Recurso Especial nº 1.829.641 – SC, para deixar claro que seu objeto não envolve instituição financeira. Não obstante, como se trata de contrato com cláusula de reserva de domínio, seria, em tese, cabível o registro em RTD, nos termos do art. 129, item 5º, da Lei 6.015/73, mantido pela MP n. 1.085/2020 (“os contratos de compra e venda em prestações, com reserva de domínio ou não, qualquer que seja a forma de que se revistam, e os contratos de alienação ou de promessas de venda referentes a bens móveis”).

      Acontece que, como os efeitos desse contrato não atingem potencialmente terceiros, tornou-se, neste caso, despiciendo o registro em RTD, conforme fundamento no voto da Ministra Nancy, extraído do REsp nº 1.829.641 – SC, in verbis:

      O registro, na verdade, se impõe como requisito tão somente para fins de publicidade, ou seja, para que a reserva de domínio seja oponível a terceiros que, por alguma circunstância, possam ser prejudicados diretamente pela ausência de conhecimento da existência de tal cláusula.

      É o que se pode verificar, a título ilustrativo, com aquele que venha a adquirir, do comprador, o bem cujo domínio encontra-se reservado a outrem (o que viria a caracterizar venda a non domino). Ou, ainda, com aqueles que pretendam a aplicação, em juízo, de medidas constritivas sobre a coisa que serve de objeto ao contrato.

      Ocorre, todavia, que, no âmbito da recuperação judicial do comprador, os credores deste não se enquadram em quaisquer das situações elencadas, pois entre eles nada foi estipulado acerca dos bens objeto do contrato em questão.

      Em suma, e por causa de peculiaridade nas decisões primárias e secundárias – embora tenham conteúdo análogos –, é recomendável a leitura sistemática dessas decisões, especialmente quando não se tem prévio conhecimento de tais julgados, com o fito de evitar interpretações equivocadas.

      No tocante a alteração do item 10º do art. 129 da Lei n. 6015/73, alterada pela MP n.º 1.085/2021, ao incluir expressamente a “alienação fiduciária de bens móveis” como exigência em relação a terceiros, até parece um backlash (reação social ou institucional) contra a decisão do RE n.º 611.639-RJ, com repercussão geral, de relatoria do Min. Marcos Aurélio, no qual ficou pacificada a constituição da propriedade fiduciária de veículos na repartição competente de licenciamento, tornando despicienda a publicidade contra terceiros no registro em RTD.

      “Em palavras muito simples, efeito backlash consiste em uma reação conservadora de parcela da sociedade ou das forças políticas (em geral, do parlamento) diante de uma decisão liberal do Poder Judiciário em um tema polêmico” (disponível no site “dizer o direito”, publicado em 19/09/2019).

      No caso, embora o Supremo entenda pela desnecessidade de registro de alienação fiduciária de bens infungíveis (veículos) em RTD, tudo indica que a inclusão de “alienação fiduciária de bens móveis”, no art. 129 da Lei n.º 6.015/73, vai de encontra ao entendimento do plenário do RE n.º 611.639-RJ, configurando uma reação institucional contra a decisão judicial, denominada de backlash.

      Ademais, no tocante a cláusula de “reserva de domínio”, inseridas duas vezes no art. 129 da Lei n. 6.015/73, por meio dos seus itens 5º e 10º, deixando transparecer um reforço ao art. 522 do CC/02, como se fosse necessário o registro de contrato com aquela cláusula no domicílio do comprador, também indica um efeito backlash contra as decisões da 3ª turma do STJ.

      Portanto, se convertida em lei a supradita medida provisória, acrescentando itens ao art. 129 da Lei de Registros Públicos, tudo indica um “backlash” contra a ideia de efeito meramente declaratório do RTD, referente à constituição de alienação fiduciária de bens infungíveis, ainda que não atinjam potencialmente terceiros. Por fim, como será visto pelo STJ esse tema, eis um assunto para os próximos artigos!

      Lourival da Silva Ramos Júnior

      Tabelião/Registrador da Serventia Extrajudicial de Sucupira do Riachão/MA

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