A alienação fiduciária de bem imóvel é disciplinada em nosso ordenamento pela Lei 9.514/97 e conceituada como “o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel” (art. 22).
Trata-se de modalidade de garantia amplamente utilizada no âmbito do mercado de crédito nacional, com destaque para sua relevância no mercado de crédito imobiliário, que tem por vantagens a segurança e a agilidade na sua execução, uma vez que a satisfação do crédito inadimplido com a excussão da garantia ocorre extrajudicialmente por meio de procedimentos ágeis conduzidos pelo Registro de Imóveis.
Pode-se dizer que o principal motivo para a grande aceitação da garantia no mercado é justamente a possibilidade de excussão rápida por meio de procedimento extrajudicial. Curiosamente, esta característica da garantia é também motivo de questionamento da constitucionalidade do instituto perante o Supremo Tribunal Federal (“STF”).
Com efeito, o STF reconheceu em 2018 a repercussão geral no recurso extraordinário 860.631/SP, que tem por objeto a constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel. Segundo argumenta o recorrente,a execução extrajudicial no Sistema Financeiro Imobiliário, prevista pela Lei 9.514/1997, viola os princípios do devido processo legal, da inafastabilidade da jurisdição, da ampla defesa e do contraditório, na medida em que permite ao credor fiduciário a excussão do patrimônio do devedor sem a participação do Poder Judiciário e, consectariamente, sem a figura imparcial do juiz natural, o que se traduziria numa forma de autotutela, repudiada pelo Estado Democrático de Direito[1].
Independentemente da discussão acerca da constitucionalidade do procedimento extrajudicial instituído pela Lei 9.514/97, a prática judiciária demonstra a existência de miríades de demandas intentadas pelos devedores-fiduciários questionando a regularidade dos procedimentos adotados pelos registros de imóveis quando da execução da garantia, muitas das quais resultam no reconhecimento da nulidade do procedimento, com atrasos na recuperação do crédito e prejuízos aos credores.
Ao se deparar com a nulidade do procedimento de excussão extrajudicial em decorrência, por exemplo, da ausência de intimação do devedor confesso em relação à data de realização dos leilões, quando há claros indícios de que o devedor detinha conhecimento de todo o procedimento, o analista mais apressado poderia concluir que se trata de mera proteção do mau-pagador, excesso de formalismo adotado por um Poder Judiciário que não acompanha o dinamismo das relações econômicas contemporâneas.
Não há dúvidas de que, em algumas hipóteses, o Poder Judiciário parece demorar mais para incorporar realidades já presentes no dia a dia das relações econômicas entre particulares, ou para reconhecer a legalidade ou a regularidade daquilo que já é prática corrente no mundo dos fatos. No entanto, quando tratamos especificamente da excussão das garantias e da invasão do patrimônio alheio[2], o excesso de formalismo tem razão de ser e não pode ser relevado.
Ora, a propriedade privada é uma garantia fundamental prevista no art. 5º da Constituição Federal e qualquer ato de poder que represente invasão do patrimônio alheio gera clara tensão entre valores protegidos constitucionalmente. Fazendo-se um paralelo com a atuação do Poder Judiciário, é no procedimento de execução que se encontra a maior carga de formalismo de todo o sistema do processo civil (e, consequentemente, a maior incidência de nulidades).
No procedimento da execução, o exercício do poder pelo magistrado transparece claro e cristalino, mediante atos concretos de expropriação e invasão patrimonial e, justamente por isso, a fim de garantir que a atuação estatal na esfera patrimonial do devedor se realize de acordo com os parâmetros previamente estabelecidos e nos limites outorgados pelo legislador, a lei especifica pormenorizadamente toda metodologia de trabalho a ser empenhada pelo Estado-juiz no cumprimento da atividade jurisdicional.
Com isso, o devedor estaria capacitado a antever todos os possíveis atos executórios que poderiam recair sobre seus bens e teria possibilitada a defesa de seu patrimônio.
Com ainda mais razão a lógica se aplica ao procedimento de excussão da garantia fiduciária: a lei desenha um procedimento detalhado que deve ser seguido à risca pelos Registros de Imóveis, de forma que o devedor tenha condições de antever todos os passos a serem tomados pelo credor e exercer de forma plena a defesa de seu patrimônio.
Ressalte-se que, em se tratando de procedimento judiciais, todos os atos são realizados sob a supervisão direta do magistrado, que garante a regularidade de todo o procedimento e o respeito às garantias do devedor. No caso da excussão extrajudicial da garantia, em que não há atuação direta do Poder Judiciário, é maior a preocupação com a adoção estrita dos procedimentos legais, razão pela qual as nulidades são recorrentes.
Dessa forma, o cumprimento estrito do procedimento legal para a execução da garantia fiduciária tem fundamento na necessidade de resguardar os direitos do devedor e impedir o arbítrio do credor. O conhecimento dos atos a serem praticados para evitar o reconhecimento de nulidades é curial para dar eficiência na realização do crédito por meio da excussão da garantia e para que esta cumpra a sua finalidade como instrumento no mercado de crédito.
Eduardo Calvert – Juiz de Direito no Estado de São Paulo, ex-Juiz de Direito no Estado do Paraná, Mestre em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP, professor de cursos preparatórios para concursos públicos e de cursos de pós-graduação e de extensão universitária.