AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE ASSENTO NO REGISTRO CIVIL. O gênero não deve ser condicionado à morfologia da genitália, e sim à autoidentificação psicológica, apresentação e reconhecimento social da pessoa.

    Receba gratuitamente a minha e-apostila!

    “10 Artigos Legais Essenciais para conhecer o Direito Notarial e Registral”

    Cadastre-se:



      Receba gratuitamente a minha e-apostila!

      “10 Artigos Legais Essenciais para conhecer o Direito Notarial e Registral”

      TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODER JUDICIÁRIO

      São Paulo

      Registro: 2017.0000423570

      ACÓRDÃO

      Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 0001354- 94.2015.8.26.0435, da Comarca de Pedreira, em que é apelante K. de S. (JUSTIÇA GRATUITA), é apelado JUÍZO DA COMARCA.

      ACORDAM, em 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

      O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores COSTA NETTO (Presidente sem voto), GALDINO TOLEDO JÚNIOR E ALEXANDRE LAZZARINI.

      São Paulo, 13 de junho de 2017.

      Piva Rodrigues RELATOR

      Assinatura Eletrônica

      Apelação nº 0001354-94.2015.8.26.0435

      Apelante: K. de S. Apelado: Juízo da Comarca Comarca: Pedreira 2ª Vara Voto nº 28402

      AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE ASSENTO NO REGISTRO CIVIL. Pedido de alteração do sexo masculino para feminino. Sentença que extinguiu o feito sem resolução do mérito. Inconformismo. O demasiado apego às regras estanques da imutabilidade e indisponibilidade do nome e do sexo, imperativos de segurança jurídica quanto à identificação da pessoa natural, não podem e nem devem servir de arrimo para limitar direito fundamental do indivíduo transexual à fruição de sua plena cidadania, em violação à sua dignidade humana. Estabelecer como requisito à alteração do sexo no assento civil a realização de cirurgia de transgenitalização, importaria condicionar o respeito à dignidade humana à violação da própria integridade física e ignorar por completo a identificação sexual psicológica do transexual. O gênero não deve ser condicionado à morfologia da genitália, e sim à autoidentificação psicológica, apresentação e reconhecimento social da pessoa. Sentença reformada. Recurso provido. Incidência do art. 515, §3º, CPC/73. Sentença reformada. Ação julgada procedente. Recurso provido.

      Trata-se de recurso de apelação interposto por K. de S. contra a r. sentença proferido pela MMª. Juíza de Direito da 2ª Vara da Comarca de Pedreira, Drª Dayse Lemos de Oliveira, às fls. 27/28, que, em 15 de julho de 2015, julgou extinta a ação de retificação de assento de registro civil de nascimento, com fulcro no artigo 267, VI, do Código de Processo Civil de 1973, sob o seguinte fundamento:

      “A requerente é pessoa do sexo masculino e, como visto na inicial, não se submeteu a procedimento cirúrgico para retirada total de seus órgãos genitais, a chamada “trangenitalização”. Mesmo que sua aparência e, provavelmente seu comportamento sejam típicos de mulheres, no plano biológico ainda é pessoa do sexo masculino, e, como tal, assim deve ser conhecida. Destarte, tendo em conta que os registros públicos devem espelhar a realidade que traduzem, por força do “princípio da veracidade”, e, sendo homem, não cabe ao menos neste momento de sua condição biológica, querer alterar seu gênero registral, caracterizando verdadeira insegurança jurídica. ” (fl. 27)

      A parte autora apela às fls. 34/37. Pugna pela reforma da r. sentença, a fim de que seja retificado seu assento de registro civil de nascimento, passando a constar o sexo feminino. Sustenta ser transexual e já ter logrado em ação previamente ajuizada, em que foi inclusive submetida a avaliações psicológicas, a retificação de seu nome, intentando, na presente demanda, a retificação de seu sexo para que passe a se coadunar com o gênero de seu nome. Sustenta a desnecessidade da cirurgia de transgenitalização enquanto requisito a retificação do sexo constante do assento.

      O recurso foi recebido no duplo efeito às fls. 49.

      Parecer do Ministério Público em Primeiro Grau pelo provimento do recurso (fls. 51/52).

      Autos distribuídos a esta Relatoria em 23.03.2016.

      Parecer do Ministério Público em Segundo Grau pelo parcial provimento do recurso, cassando-se a sentença e determinando-se o prosseguimento do feito (fls.59/63).

      Em observância ao despacho de fl. 65, foi juntado às fls. 77/80 laudo psicológico mencionado na sentença de fls. 17/20 do processo nº 0002699- 97.2011.8.26.0435, em que alterado o nome da ora apelante.

      É o relatório.

      O recurso comporta provimento, para julgar procedente o pedido.

      Estando a causa em condições de imediato julgamento, impõe-se a aplicação do quanto disposto no artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil de 1973, aplicável in casu, dada a publicação da sentença em momento anterior à vigência do Novo Código de Processo Civil.

      De acordo o artigo 3º da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.955/2010, que dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo, “(…) a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados: 1) Desconforto com o sexo anatômico natural; 2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4) Ausência de outros transtornos mentais.”

      Pois bem, em observância a tais critérios, a Psiquiatra Estela Niimi da Cruz, em laudo de fls. 77/78, produzido nos autos do processo nº 0002699-97.2011.8.26.0435, atestou que “o examinando apresenta todos os quesitos necessários para defini-lo como sendo portador de transexualismo. (…)Considerando- se que: o examinando exibe características físicas absolutamente compatíveis com o sexo feminino; não apresenta transtornos psiquiátricos que possam influenciar de nenhuma forma sua capacidade de entendimento e autodeterminação; sofre diversos prejuízos sociais em decorrência da incompatibilidade entre as informações de seu registro civil (prenome e identificação do sexo) e seu sexo psicossocial, afirmo que não há nenhum impedimento médico nem ressalva técnica aos procedimentos que possam lhe trazer ajustamento ao sexo feminino tais como a mudança de dados  em seu  registro civil e o emprego de terapias hormonais e cirúrgicas referendadas pela prática médica. Pelo contrário, qualquer uma dessas possibilidades apresentara importante auxílio à adequação psicossocial do paciente à vida em comunidade e imenso benefício à sua saúde psíquica.”

      Há, ainda, declaração do médico ginecologista, obstetra e ultrossonografista da apelante de que “acompanho há, aproximadamente, 3 (três) anos, tendo durante todo este tempo, constatado a feminilização corporal estabelecida já há alguns anos, com uso de hormonioterapia estrogênica, por decisão pessoal e espontânea do paciente, sendo impositivo o desejo e a transformação feminina, tendo já se submetido a colocação de prótese mamaria feminina, inclusive, assumindo-se definitivamente um comportamento de vida e social, compatível com o sexo de opção (feminino), nas 24 horas diárias”. (fl. 79)

      Pois, bem.

      Verifica-se que o demasiado apego às regras estanques da imutabilidade e indisponibilidade do nome e do sexo, imperativos de segurança jurídica quanto à identificação da pessoa natural, não podem e nem devem servir de arrimo para limitar direito fundamental do indivíduo transexual à fruição de sua plena cidadania, em violação à sua dignidade humana.

      Estabelecer como requisito à alteração do sexo no assento civil a realização de cirurgia de transgenitalização, importaria condicionar o respeito à dignidade humana à violação da própria integridade física e ignorar por completo a identificação sexual psicológica do transexual.

      Como bem pontuou o I. Representante do Parquet em Primeiro Grau, “não se transforma um homem em mulher apenas amputando-slhe o pênis. Afinal, se assim fosse, um paciente que tivesse seu pênis extraído em razão de alguma doença ou extirpado em virtude de um acidente, viraria, automaticamente, mulher. O que o indivíduo necessita para ser homem é uma mente normal masculina, comportamento masculino, aceitação social como homem pelos seus pares, e reconhecimento legal. Portanto, se partirmos do equivocado principio da imprescindibilidade da cirurgia para alteração do gênero, teremos que, obrigatoriamente, concluir que uma transexual masculino nunca poderá ingressar com ação semelhante a que ora se aprecia. Afinal, seria inimaginável exigir que o transexual se submetesse à neofaloplastia, cirurgia ainda em fase experimental.” (fls. 24/25)

      Evidente o constrangimento porque passa a apelante ao ostentar em seu documento de identificação gênero oposto àquele relativo ao seu nome, a sua imagem e, principalmente, a sua íntima identificação sexual, de modo que sua pretensão encontra guarida nos termos do artigo 55, parágrafo único, da Lei nº 6015/73, que veda a utilização de nomes que exponham a pessoa ao ridículo.

      Incontroverso o transexualismo no presente caso, porquanto patente desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo do nascimento e tendência à feminilização, impõe-se, assim, o deferimento do pedido de retificação do registro civil, a fim de que à apelante seja legal e formalmente atribuída sua identificação feminina, independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização.

      Nesse sentido, esta Câmara já se pronunciou no julgamento da apelação 0055269-67.2008.8.26.0576, de Relatoria do E. Desembargador Galdino Toledo Júnior: “os elementos de identificação jurídica da pessoa física, sobretudo o concernente ao registro do seu sexo, ou gênero, com o estado e as funções que lhe atribui à cultura, constituem dados da consciência de si mesmo, expressões objetivas da personalidade e fatores da certeza indispensável ao convívio social e à fidelidade das ações”, sendo que “o registro civil, de todo modo, não pode se prestar a ser instrumento de agravação de situação de opressão social e discriminação transexual ao indivíduo que possui disfunção de gênero (…), perpetuando elementos identificadores da pessoa que são absolutamente incompatíveis com a condição física e psicológica assumida pelo transexual”,

      Ainda, consoante se extrai das notícias veiculadas no site do Superior Tribunal de Justiça1, em recentíssimo processo julgado em 09 de maio de 2017, cujo número não foi divulgado em razão de segredo judicial, a Quarta Turma daquela Corte firmou entendimento no mesmo sentido, de que o direito dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à realização de cirurgia, que pode inclusive ser inviável do ponto de vista financeiro ou por impedimento médico.

      http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Transexuais-t%C3%AAm-direito-%C3%A0-altera%C3%A7%C3%A3o-do-registro-civil-sem- realiza%C3%A7%C3%A3o-de-cirurgia

      A tal respeito, consignou o Ministro Relator Luis Felipe Salomão que “a exigência de cirurgia de transgenitalização para viabilizar a mudança do sexo registral dos transexuais vai de encontro à defesa dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos máxime diante dos custos  e  da impossibilidade física desta cirurgia para alguns , por condicionar o exercício do direito à personalidade à realização de mutilação física, extremamente traumática, sujeita a potenciais sequelas (como necrose e incontinência urinária, entre outras) e riscos (inclusive de perda completa da estrutura genital)”.

      Assim, do até aqui exposto, é de se concluir que o gênero não deve ser condicionado à morfologia da genitália, e sim à autoidentificação psicológica, apresentação e reconhecimento social da pessoa.

      Pelo exposto, dou provimento do presente recurso, para julgar procedente o pedido, determinando a retificação no assento de nascimento da apelante para que passe a constar o sexo “feminino”, com a observação de que as informações retificadas serão de conhecimento exclusivo da ora apelante ou de quem as requeira judicialmente, vedando-se a referência à retificação nas certidões do registro.

      PIVA RODRIGUES

      Relator

      Deixe um comentário

      O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

      Últimas postagens

      Últimas postagens

      Últimas postagens